13 julho 2007

Senhora Liberdade

Uma senhora não merece assobios.Questão de educação. Ou, como dizia Wilde pela boca de um personagem, as manei­ras são anteriores à moral. O público que esteve presente no circo das Se­te Maravilhas do Mundo não con­corda com a tese e visivelmente não aprendeu as maneiras em casa. Bas­tou esperar pelo momento em que a Estátua da Liberdade, indicada para a lista final, apareceu nos écrans do estádio da Luz, em Lisboa. O estádio desabou em apupos e pateadas. Co­mo na canção, "the lady is a tramp".

Pena. Concordo que a Estátua da Liberdade não é prodígio escultóri­co ou arquitetônico. Ao vivo, é até um poderoso anticlímax. Tamanho pequeno. Tosca de formas. Inex­pressiva como objeto artístico. Comparada com os eleitos, perde em pontuação técnica ou estética, apesar de seis deles serem produto de sociedades bárbaras ou escrava­gistas - um pormenor histórico que não incomoda as consciências humanitárias (e antiamericanas) do público. Ou julgavam que a China imperial, a Índia muçulmana, as ci­vilizações maia e inca, os nabateus do Oriente Médio e a Roma dos Cé­sares eram um parque de diversões?

Mas a Estátua da Liberdade não é, em rigor, uma estátua Ela é um sím­bolo, uma história, uma promessa
: a promessa de que, apesar de tudo, e de tanto, seria sempre possível reco­meçar. Eis a promessa que recebeu milhões de seres humanos na chega da a Ellis Island. E que tinham na es­tátua – tamanho pequeno, tosca de formas, inexpressiva como objeto artístico - a primeira senhora gentil em dias ou meses de viagem agreste. Nos filmes de Coppola ou nas pági­nas de McCourt, a estátua confun­de-se com o olhar grato do imigran­te que a encontra pela primeira vez, ou pela milésima vez, contando com todas as vezes em que ela aparecia nos sonhos.

A estátua era um porto de chega­da, sim. Mas era também um porta de partida: a última visão de casa pa­ra meio milhão de rapazes que não regressaram da Europa. Cem mil não regressam em 1918. Quatro­centos mil não regressaram em 1945. Mas a Europa já esqueceu es­ses tempos sombrios em que, sitiada por uma máquina de guerra desu­mana e brutal, olhava para essa está­tua - tamanho pequeno, tosca de formas, inexpressiva como objeto artístico - e esperava que uma tocha de liberdade a viesse salvar e iluminar. Como, na verdade, ela veio. Duas vezes.

E para quê?

Para nada: em direto da capital do meu país, a ignorância e a bestialida­de da multidão mostraram e com­provaram ao mundo como foi inútil o sacrifício. E como o ódio à América não se distingue,hoje, de um ódio à humanidade: essa humanidade que, falando italiana ou alemão, portu­guês ou francês, iídiche ou japonês, foi acolhida pelo mais nobre, e também por isso o mais belo, de todas as monumentos possíveis.

Disse que as maneiras são anterio­res à moral. Mas, quem não tem ma­neiras, não tem moral. A memória da Europa não é apenas curta. É curta e ingrata. Nessa ingratidão, existe a marca do seu caráter. Mas existe também o prenúncio do seu triste e solitário futuro.

Autor: João Pereira Coutinho, colunista da Folha de São Paulo.

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